A safra 2020/2021, principalmente para a cultura da soja, apresentou um cenário bastante singular a partir da subida considerável de preço, causando uma grande tensão entre os envolvidos, principalmente para aqueles que possuíam contratos com valores travados em 2020 e cumprimento previsto para 2021. E com o término da safra essa tensão não deverá se encerrar, visto que a variação de preços é risco inerente ao próprio negócio.
Em uma verdadeira “queda de braços”, há, de um lado da mesa, os produtores rurais que consideram a variação do preço grande demais. Do outro lado, compradores temerosos, visto que, a cadeia do agronegócio é longa, toda interligada e não se encerra com a colheita e a primeira entrega.
Nesse contexto e diante do intenso debate que se instalou, principalmente entre os produtores, pergunta-se: existe viabilidade jurídica para se buscar a revisão ou mesmo a extinção dos contratos em razão da variação do preço do produto?
O agronegócio e os contratos futuros
Primeiro, é importante entender este tipo de operação. Os “contratos de futuros” ou de “venda a termo” são uma importante ferramenta de fomento do agronegócio, pois, permitem às partes contratantes fixar (operação de hedge) um preço que entendem viável para ambas, afastando-se do risco da flutuação do mercado (para cima ou para baixo) ao tempo da colheita.
Entretanto, o comprador deste grão (cooperativas, tradings etc.) não é destinatário final, evidentemente. Ao mesmo tempo em que trava quantidade e preço com o produtor, o comprador negocia esse contrato, normalmente na Bolsa de Mercadorias. Ou seja, trata-se de uma operação maior e muito mais complexa que o contrato entabulado entre produtor rural e comprador: é uma cadeia negocial que evidencia muito bem o que de fato é o tão falado “agronegócio”: a soma das operações de produção e distribuição de suprimentos, das operações de produção nas unidades agrícolas, do armazenamento, processamento e distribuição dos produtos.
Dentro desse contexto negocial em que estão envolvidos inúmeros interessados, há que se analisar a viabilidade jurídica de insurgir-se contra os contratos futuros firmados entre produtores rurais e compradores. E aqui o cerne da questão se encontra na “teoria da imprevisão”, já conhecida nos tribunais brasileiros.
Mas quem paga a conta da imprevisão?
Via de regra, demandas judiciais que buscam revisar ou extinguir os contratos futuros fundamentam-se na imprevisibilidade, por parte do produtor, de antecipar tamanha variação de preço, alegando, a partir daí, uma suposta onerosidade excessiva vinda dessa variação, caso fortuito e força maior.
O primeiro ponto que se percebe é que os contratos futuros existem tão somente porque a variação de preço do produto existe. Se o preço fosse tabelado e estável, não existiria razão alguma para se fixar o preço via operação de hedge em contratos futuros. Portanto, a própria natureza do contrato depõe contra a tese de que a variação de preços é algo imprevisível.
Aliás, não é de hoje que se discute nos tribunais a teoria da imprevisão em relação à variação de preço dos produtos em contratos futuros. O STJ já fixou entendimento de que não se aplica a este tipo de contrato esta tese. Veja-se por exemplo:
“O caso dos autos tem peculiaridades que impedem a aplicação da teoria da imprevisão, de que trata o art. 478 do CC/2002: (i) os contratos em discussão não são de execução continuada ou diferida, mas contratos de compra e venda de coisa futura, a preço fixo, (ii) a alta do preço da soja não tornou a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, mas apenas reduziu o lucro esperado pelo produtor rural e (iii) a variação cambial que alterou a cotação da soja não configurou um acontecimento extraordinário e imprevisível, porque ambas as partes contratantes conhecem o mercado em que atuam, pois são profissionais do ramo e sabem que tais flutuações são possíveis.” (REsp. 936.741 / GO)
Portanto, insistir nesta tese não parece a melhor forma de encarar a questão, posto que o entendimento pacificado tende a ser cada vez mais consolidado a partir da profissionalização da gestão dos participantes da cadeia do agronegócio, notadamente produtores rurais, sendo cada vez mais atual do jargão de que: “no agronegócio não há mais espaço para amadores”.
E a pandemia?
Neste ponto, pode surgir tal questionamento e sim, o mundo vive uma situação extraordinária em decorrência da pandemia da COVID-19.
Uma pandemia é algo absolutamente imprevisível por todos e não há dúvida de que seja algo inusitado e inimaginável. Entretanto, ela não atrai a aplicação da teoria da imprevisão por três razões. A primeira é que, até o momento, não é possível vincular diretamente a impossibilidade de entrega do grão com a pandemia, notadamente porque o agro não parou este tempo todo, bem pelo contrário, apresentou números recordes.
A segunda é que a pandemia tem sim efeitos sobre a variação cambial, mas foram vários fatores que historicamente influenciaram na oscilação do dólar e nenhum deles até então foi reconhecido como suficiente para atrair a tese da imprevisibilidade (por exemplo: guerras, tensões políticas, catástrofes climáticas entre outros).
Por fim, fundamental recordar que a própria “Lei da Pandemia” (nº 14.010/2020), expressamente afasta a variação cambial do rol de fatos imprevisíveis. Veja:
Art. 7º Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário.
Desta forma, a conclusão é de que a pandemia, por si só, não tem força para alterar o posicionamento dos tribunais brasileiros acerca da inaplicabilidade da teoria da imprevisão aos contratos de venda a termo.
E se o produtor quiser pagar a multa?
Muito se questiona sobre a seguinte possibilidade: mas se o produtor pagar a multa contratual e deixar de entregar o grão, ficaria tudo certo? Isto porque o preço atual do grão viabilizaria este procedimento, mantendo mais dinheiro no bolso do produtor.
O raciocínio não é de todo incorreto. O pagamento da multa, em tese, livraria o produtor do cumprimento do contrato. Entretanto, contratos de compra e venda de commodities trazem, via de regra, cláusula de perdas e danos batizada de “washout” (ou, pelo menos algo muito semelhante, de mesma natureza, ainda que não descrito como “washout”).
Esta cláusula prevê que, caso o vendedor não cumpra com a entrega do produto, deverá indenizar o comprador pela diferença de preço apontada entre o valor fixado no contrato e o valor de mercado daquela commodity.
Mas por que esta cláusula existe? Porque, conforme já mencionado, o contrato faz parte de uma cadeia negocial longa, complexa e interligada. Caso o produtor não entregue o produto, a empresa ou a cooperativa que o comprou tem compromissos em sequência e vai ter que cumprir a parte dela. Portanto, na falta do grão não entregue, vai buscar no mercado produto para cumprir seus contratos. É por isso que ela tem direito de cobrar esta diferença, já que vai pagar um preço muito maior a fim de cumprir com suas obrigações.
Assim, é perfeitamente possível e legal cumular a multa contratual com a cláusula de “washout”, visto que possuem naturezas diversas: a primeira é punitiva, ao passo que a segunda é indenizatória.
Conclusão
Portanto, conclui-se que a “teoria da imprevisão” não é aplicável como argumento a fim de rever contratos de venda a termo, uma vez que as incertezas, imprevisões e, principalmente, a variação de preços são riscos inerentes à própria atividade.
Demais disso, tratando-se o agronegócio de uma enorme cadeia que seguirá existindo, descumprir contratos apenas por força de variações momentâneas certamente não é a medida mais acertada.
A Cooperativa Frísia, trabalhando de forma idônea e sempre buscando o melhor para os seus associados, fica a disposição para orientações e eventuais esclarecimentos complementares sobre o tema.
Autor: Maurício Luz – Coordenador Jurídico da Frísia
(Texto elaborado a partir das lições do advogado e professor Francisco Torma, publicadas em 21/01/2021)